Quando desapegar é inevitável


“Lembre-se que você a ninguém pertence e que ninguém lhe pertence. Reflita que algum dia terá que subitamente abandonar tudo nesse mundo...”- Paramahansa Yogananda

Lê-se tanto textos e frases sobre desapego, deixar fluir e seguir, que desapegar na teoria dar ares de ser algo simples de exercer. No entanto, se fosse realmente fácil, não seria um tema tão disseminado.

Qualquer tipo de apego, seja a coisas, bichos de estimação, dinheiro ou pessoa (basicamente tratado nesse post) exerce um domínio e posse sobre o apegado, visto que este busca através do seu apego compensar seus medos, dependências, inseguranças, sofrimentos e carências. Tudo em vão, pois nada nesse mundo é passível de posse.

Só quem passou por um processo de desapego “forçado” pelas circunstâncias da vida, sabe o quanto não é fácil. Quanto mais “apegado” a alguém, mais doloroso é o processo de desapego. Sente-se o coração partido e a mente inquieta questionando inúmeras vezes o que aconteceu com as promessas e declarações de outrora. “Era tudo mentira?” Rumos diferentes são tomados, sintonias se perdem, afinidades mudam. A vontade de estar próximo ou compartilhar algo (alegria ou tristeza) já não é prioridade. Percebe-se que já não cabemos mais em determinados lugares.

Passado o período de “luto” pelo fim de algo que morreu e trabalhada a aceitação de que as coisas acontecem porque tinham que acontecer, afinal decepções e desilusões são inerentes à vida, é imprescindível livrar-se de qualquer sentimento ruim ou de posse e passar a exercer a resiliência para que a vida volte a fluir plenamente, já que “o passado é uma roupa que não se veste mais”. Insistir em vesti-lo trará estagnação, impedindo que se siga em frente e se colha os bons frutos de novas colheitas, novos ciclos, novas histórias, novas vivências e sabores.

Não, as pessoas não são substituíveis. E não podemos confundir desapego com desprezo ou descarte. Contudo, é preciso entender que nada é pra sempre. Tudo é mutável, temporário. E qualquer tipo de relacionamento deve trazer liberdade, não opressão ou dependência, e algumas, inevitavelmente, se vão com o tempo e ficam as recordações. As lembranças boas permanecem e são essas que precisam ser guardadas, porque todos que passam pelas nossas vidas, passam para nos ensinar algo.

Ao longo da vida, entendemos que ciclos se encerram, portas são trancadas, livros são finalizados, e, independente do fim da história, o livro precisa ser fechado e guardado para se iniciar uma nova narrativa ou quem sabe uma releitura com o passar do tempo? Alguns ciclos ora se renovam, ora se reconstroem, ora percebe-se que algumas portas fechadas nunca mais serão abertas e insistir para que elas se abram machuca mais do que simplesmente partir. Qualquer tipo de tentativa de reaproximação causa desconforto, aperto no peito. Então, deixar partir é a única opção saudável. É preciso deixar partir quem não deseja mais permanecer em nossas vidas, quem quer partir para novos rumos, sonhos, aventuras...

Coração tranquilo, aceitação e paz para que a vida volte a fluir e lhe traga, pouco a pouco, a certeza de que o que temos dentro de nós é nossa maior âncora e possamos seguir em frente com paciência e sabedoria, sendo luz e amor por onde passar.

“Sempre em frente. Não temos tempo a perder.”

Transcrevo aqui, uma passagem do livro Autobiografia de um Iogue, de Paramahansa Yogananda para reflexão.

“Com 100m2 de terra fértil à nossa disposição, estudantes, professores e eu nos deliciávamos com períodos diários de jardinagem e de trabalho ao ar livre. Tínhamos diversos animais de estimação, inclusive um veadinho, ternamente idolatrado pelas crianças. Eu também amava o pequeno cervo a ponto de permitir que ele dormisse em meu quarto. Ao raiar a madrugada, a criaturinha aproximava-se, tropeçante, de minha cama, para uma carícia matutina.

Um dia, quando certo negócio exigia minha atenção na cidade de Ranchi, alimentei o animalzínho mais cedo do que de costume. Disse aos meninos que não lhe dessem comida até o meu regresso. Um deles, desobediente, lhe deu uma grande quantidade de leite. Ao voltar, à tarde, tristes novas me esperavam: o filhote de corça estava quase morto, devido à superalimentação.

Em lágrimas, coloquei o bichinho inanimado em meu colo. Orei piedosamente a Deus para que a vida lhe fosse poupada. Horas depois, a pequena criatura abriu os olhos, ficou de pé e caminhou muito fraca. A escola inteira gritou de alegria.

Naquela noite, porém, aprendi uma lição profunda, que jamais poderei esquecer. Eu permanecera velando o animalzinho até duas horas da madrugada, quando adormeci. O veadinho apareceu me em sonho e me disse:
“O senhor está me segurando. Por favor, deixe me ir; deixe me ir!”
“Muito bem”— respondi em sonho. Acordei imediatamente e gritei:
“Meninos, o veadinho está mor¬rendo!”

As crianças correram para junto de mim. Precipitei me para o canto do quarto onde colocara o animalzinho querido. Ele fez em último esforço pata levantar se, cambaleou em minha direção e em seguida tombou a meus pés, morto.

De acordo com o carma de um grupo que guia e regula os destinos dos animais, o prazo de vida do veadinho chegara ao fim, e ele estava pronto para progredir a uma forma mais elevada. Entretanto, com meu profundo apego, que mais tarde reconheci ser egoísta, e com minhas preces fervorosas, eu conseguira reter aquela vida nas limitações da forma animal enquanto sua alma lutava por se desembaraçar. A alma do veadinho fez sua súplica em sonho porque, sem minha amorosa permissão, ele não podia ou não queria partir. Assim que concordei, ele se foi.

Toda tristeza me abandonou; compreendi mais uma vez que Deus quer que Seus filhos amem a cada coisa como uma parte Dele, e não sintam ilusoriamente que a morte é o fim de tudo. O homem ignorante vê apenas o muro intransponível da morte, ocultando para sempre os amigos queridos. Mas o homem sem apego, o que ama os outros como expressões do Senhor, compreende que na morte os seres amados apenas regressaram para um hausto de alegria em Deus.”

Revisão de texto: Andrea Rodrigues

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